quarta-feira, 16 de julho de 2014

Enfrente

Enfrenta, mesmo
Te desafia,
faz o que nunca fez
fita a pele gasta

E cochicha no ouvido
dela e diz:
com Cristo no barco,
tudo vai bem

A velha agora
é menina
Tem medo
e quer companhia

Se sentir, fica
Se sentar, olha
bem no fundo,
cada ruga

E relembra,
conta pros que vem
deixa viver
quem só te quis bem

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Um quarto sem porta

Meu quarto não tem porta e eu sei que isso não é um grande problema. Tem gente que não tem nem mesmo um quarto. Antes um quarto sem porta do que uma porta sem quarto.

Um dos pequenos problemas de um quarto sem porta é que nunca há escuridão total. Sim, eu sei que pra muitos isso não é um problema. É bom ter uma certa luz pra saber onde está o copo d'água, o interruptor, a porta.

Pra que meu quarto fique totalmente escuro é necessário que todas as janelas da casa estejam cobertas por grossas cortinas. Não tem cortina na janela do banheiro, então é necessário fechar a porta. Mas sempre passa uma um pouco de luminosidade pela fresta da parte superior e inferior da porta do banheiro.

Um sono que demora não é um problema.

Todas as manhãs são uma tortura. Meu descanso nunca é pleno, e por enrolar demais na cama, tenho que levantar e tomar café imediatamente. E eu não gosto de tomar café tão cedo. Mas isso não é um problema. Muitas pessoas não têm o que comer pela manhã.

Um despertador que não desperta é um grande problema.

E depois do café e do banho, segue-se o dia. E no fim, fico cansado, me deito. Não consigo dormir. Meu quarto não tem porta e a janela do banheiro não tem cortina. Sempre entra uma luminosidade que vem do poste da rua, que passa pela fresta da parte superior e inferior da porta do banheiro. Mas isso não é um problema.  

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O dia

O dia de estudo
Amanheceu garoando
E disse

Foi cinzento hoje
Porque antes fora colorido
E quente

O dia diz tudo
Mandou em mim
E fiz

domingo, 3 de novembro de 2013

Domingo

Todo domingo tem um jeito estranho de fim. Desde pequeno sinto isso. Estranho, porque o domingo na verdade é o começo da semana, uma renovação da rotina.

Não falo de um fim como o do Fantástico - que volta no domingo que vem. Falo de um fim de novela, um fim apocalíptico.

Apesar de parecer mórbido, não é tão ruim. Eu sei que amanhã tudo começa de novo - espero não estar enganado nesta noite.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Ela

Ela continua sendo ela. Mesmo que hoje acredite numa coisa nova e desacredite no que cria ontem. Tudo bem, ainda é jovem, mas mesmo com o peso dos dias a mais, seu rosto continua firme e bem desenhado. E o pior, ela sabe disso. E pior ainda, ela se aproveita disso.

Ainda que mais baixa, me olha em plongeé. É holofote que não me permite olhar para cima. Holofote ingrato! Transforma-me em ator principal de seu mais novo espetáculo, um monólogo meu sobre mim que ela ouve lá da única poltrona da plateia.  Ela não sabe de nada, mas do jeito que me olha, me faz contar tudo.

Verborrágico. Essencialmente prolixo e autocrítico. Discurso sem pé nem cabeça, com clímax no começo e fim entediante. Palavras apressadas para chegar logo no fim.

Agora entendo a plateia de um só.

Fim dos espetáculo! Nunca entendo porque ela apaga o holofote de maneira tão suave e acende de forma tão abrupta que me faz doer os olhos.

Quais motivos teria para voltar? Nenhum, se pensasse só em mim. Espera. Ela pensa em mim, também!


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Coisas que a gente se esquece de dizer



Olha lá o moleque descendo a ladeira! Vai descendo o morro, assim como o rio desce rumo ao mar. Mar que ele nunca sequer sonhou. Água só da lagoa, do rio, da represa e das chuvas de janeiro.

Te segura, menino! Ele passa rasgando, parece em fuga, nem olha para os lados. Qualquer dia estabaca a boca no paralelepípedo. Qualquer dia.

Ele não está em fuga, ele corre ao encontro. São quase cinco e já da pra ouvir o trem de longe. Para onde ele vai? Será que entra por algum buraco na mata? Impossível haver tanto trilho Minas a dentro! Qual é o tamanho de Minas? Deve ser muito grande. Grande mesmo.

Olha lá o trem indo! Vai correndo os trilhos, assim como o rio corre rumo ao mar. E tem muitos vagões. Mais do que os números que o moleque aprendeu a contar.

Quem já se acostumou ao aroma doce, sente bem o cheiro de sal que sai do atrito das rodas com o trilho. Deve ser do suor, conclui o pequeno. 
Capa do disco "Clube da Esquina", lançado em 1972.
Título do texto é a primeira estrofe da música "Trem azul", de Lô Borges, que faz parte do albúm.